Ao vencedor, os vinhos

Ao vencedor, os vinhos

Publicado por: Beto Gerosa Publicado: 26/11/2023 20:31 Visitas: 545 Comentários: 0

Se antes do ano 2000 alguém sugerisse escrever um artigo sobre vinhos da Chapada Diamantina, ou do interior do estado de São Paulo ou até mesmo de Brasília, certamente seria questionado que substância alucinógena estava ingerindo, além de álcool. Vinhos destas regiões eram algo absolutamente inimaginável.  A única experiência que se dava fora do eixo sul do país para vinhos finos estava localizada no Vale do São Francisco, denominados de vinhos tropicais. Os produtores mais conhecidos: Terra Nova (Miolo Group, criado em 2001), Rio Sol (Global Wines, 2003) e Botticelli (o pioneiro, 1984). O surpreendente morava ali, com suas duas colheitas anuais e vinhos jovens e espumantes.

Em 2023 o mapa do vinho no Brasil é muito mais diversificado. O inimaginável se tornou realidade graças à introdução da técnica da poda invertida (hein? Explico nos próximos parágrafos), há cerca de 20 anos. 

Se nos anos 2000 além dos vinhos finos tradicionais da região sul do país tínhamos o exotismo dos vinhos tropicais do Nordeste, uma novidade começou a chamar a atenção dos consumidores nos anos 2020: os vinhos de inverno (pois são colhidos nesta estação do ano).

Pipocaram empreendimentos em várias regiões do país. São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Pernambuco, Goiás e até Distrito Federal, onde algumas propostas podem terminar em pizza, mas agora acompanhados de vinho local. Muitos rótulos surpreenderam especialistas do país e conquistaram premiações internacionais, caindo no gosto do consumidor. Longe de ser uma aventura estes produtores espalhados pelo país têm musculatura e articulação e uma associação que os representa, a Anprovin (Associação Nacional de Produtores de Vinho de Inverno) com 35 associados, 651 mil garrafas de vinho produzidas em 318 hectares de vinhedos plantados.

Dupla poda

O ano era 2001. Observando que nas melhores regiões vitivinícolas mundiais o clima no período que antecede a colheita é caracterizado por dias ensolarados, noites frias e pouca chuva, o agrônomo Murillo de Albuquerque Regina, à frente da Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) teve seu momento eureca. Um pensamento não saía de sua cabeça: 

“É exatamente o que acontece na minha terra em maio, junho e julho;  se eu quiser obter uma boa uva para vinho eu tenho de inverter o ciclo das plantas”.

Estava criado o processo da poda invertida. Uma poda é feita em agosto, após a colheita, e outra em janeiro ou até fevereiro. Na época da colheita os dias são ensolarados (até 27º), as noites mais frias (cerca de 10º) e a amplitude térmica, que é a diferença do dia e da noite, chega a 15 e 17º. Além disso, neste período, há pouca chuva. A chuva é um dos grandes vilões para a uva utilizada para a produção de vinhos finos. Com a segunda poda, em janeiro, o ciclo recomeça e a planta floresce em abril e maio e as uvas são colhidas no final de julho, início de agosto, daí o nome de vinho de inverno.

“É como se as uvas no inverno dormissem num quarto com ar condicionado, e permanecessem fresquinhas, enquanto as uvas que maturam no verão repousam num quarto quente, transpirando e perdendo elementos da fruta importantes na extração do vinho”, comparou Murillo em uma entrevista a este jornalista em 2013, por conta de uma resenha sobre o primeiro vinho fruto desta técnica que alcançou alguma repercussão: Primeira Estrada, da vinícola Estrada Real, de sua propriedade.

 

UVVA se escreve com dois vês

Nos anos 1980 a família Borré, do Rio Grande do Sul, investiu na Chapada Diamantina, e foi bem-sucedida na plantação de café e principalmente na lavoura de batatas. Mais tarde enxergou a oportunidade de diversificar os negócios e apostou na plantação de vinhedos em 2012, seguido de investimentos pesados em pesquisa e tecnologia. E aqui os caminhos apontados por Murillo Albuquerque e os vinhos de inverno se cruzam, demonstrando na prática que técnica que bate em Chico também bate em Francisco. “Este projeto não existiria sem a parceria com a Embrapa e a experiência de Murilo Albuquerque”, disse Fabiano Borré, sócio proprietário e CEO da vinícola UVVA, localizada na cidade histórica de Mucugê, na Bahia, uma região turística mais conhecida por suas cachoeiras, trilhas e serras. 

Distante 450 quilômetros de Salvador, os 52 hectares de vinhedos da UVVA estão a 1.150 metros acima do nível do mar, e apresentam solo franco-argiloso-arenoso e na época da colheita a amplitude térmica é de 8º a 25Cº. Bingo! O momento perfeito para a colheita no inverno, como constatou Murillo lá em 2001.

 

Vinhedos e interior da adega com vista para a Serra do Sincorá, na Chapada Diamantina

A estrutura arquitetônica da vinícola é recente, de 2022, e impressiona pela linha moderna e pelos equipamentos de última geração, com capacidade de produção de 260 mil garrafas ano. Fabiano ressalta que onde foi possível priorizou os equipamentos nacionais, assim como a contratação local de colaboradores (120 no total) para tocar o empreendimento. 

Suzana Barelli, coautora deste Guia dos Vinhos, e que já esteve na UVVA, relata que a tecnologia usada é de ponta, o laboratório é dos mais modernos que já visitou entre vinícolas pelo mundo. O enólogo, por exemplo, conta com uma adega própria, dentro da vinícola, para fazer as microvinificações. Um luxo para poucos. O enoturismo é outra aposta. Há pacotes para todos os gostos de degustação até a oportunidade de participar da colheita, no mês de julho. O restaurante Arenito, comandado pelo chef André Chequer e de propriedade da família, tem menu, claro, harmonizando com os rótulos da casa. É um negócio de vinho com começo, meio e fim.

Tecnologia de ponta na adega: 1. barricas Seguin Moreau com movimentos giratórios, faz a remontagem automaticamente; 2 Pequena adega do enólogo (tanques pequenos) dentro da vinícola;

Quem comanda a parte enológica é Marcelo Petroli, 42 anos filho de um produtor de uvas em Bento Gonçalves (RS). Petroli tem experiências com os vinhedos tradicionais (Miolo), os vinhos tropicais (Vale do São Francisco) e agora os de inverno (UVVA). Está no projeto desde o início, em 2012, quando conheceu Fabiano Borré. Sob sua supervisão estão plantadas nos 52 hectares da propriedade sete variedades tintas: cabernet sauvignon, cabernet franc, petit verdot, pinot noir, syrah, malbec e merlot; e duas brancas: chardonnay e sauvignon blanc. São aquelas denominadas pela UVVA como "cepas diamantinas". Um pouco de marketing não faz mal a ninguém. Tanto a colheita como a seleção das bagas são feitas de forma manual

O primeiro vinho que tanto Marcelo Petroli como Fabiano Borré consideraram com qualidade para exibir o rótulo UVVA foi um cabernet sauvignon, em 2018. Os vinhos anteriores não passaram pelo crivo: “Tinha cor, acidez, mas muita pirazina (amargor), faltava equiíbrio”, comentaram. Com uma humildade pouco comum no meio, Fabiano e Marcelo sabem que há um longo caminho a percorrer. “Estamos no começo”, costumam salientar. Mesmo assim, já conquistaram algumas premiações e boas pontuações em guias, incluindo neste nosso Guia dos Vinhos. Foram degustados às cegas (sem conhecimento prévio dos vinhos) cinco rótulos: Cordel 2019 (91 pontos), Diamã 2020 (91 pontos), Syrah 2021 (88 pontos), Sauvignon Blanc 2020 (90 pontos) e Chardonnay 2021 (87 pontos). Destacamos dois deles na seção abaixo de Vinhos do Guia. Nada mal para um projeto tão recente.

Em uma segunda prova, agora em um evento com a presença de Marcelo e Fabiano, foram apresentadas a linha de espumantes, brancos e tintos (varietais e blend). A garrafa mais surpreendente foi exatamente o Cabernet Sauvignon Microlote 2020, a variedade que deu o ponta-pé inicial da produção e que é a grande aposta tanto de Marcelo como de Fabiano. Também é o mais caro. Nada é perfeito. Já os espumantes, por enquanto, ainda não mostraram a que vieram.

Os chamados de vinho de inverno, na sua grande maioria, têm como porta-estandarte duas uvas: a sauvignon blanc para os brancos e o syrah para os tintos. Curiosamente, nos tintos da UVVA a syrah foi a varietal com menor expressão e os blends talvez o caminho mais certeiro na elaboração de caldos maduros, de boa estrutura, expressão em boca e taninos macios. Um vinho de corte (blend) é sempre uma escolha do enólogo, uma receita que sempre aproveita o melhor de cada safra para compor a composição final. Um tanto daquela uva, uma pitada de outra e por aí vai.

 

Os blends da UVVA respeitam esta lógica: no Cordel (uma remissão óbvia à cultura popular local) de 2019 domina a cabernet sauvignon (65%), acompanhado de merlot (20%) e malbec (15%); na safra 2020 é a syrah que protagoniza (também com 65%), seguido de cabernet sauvignon (22%), merlot (12%) e malbec (apenas 1%). No Diamã (sinônimo de diamante) 2019 e 2020 há uma troca de porcentagens entre cabernet franc, cabernet sauvignon, merlot, malbec e petit verdot, sendo que na safra 2019 a franc domina e na de 2020 a cabernet sauvignon ocupa este lugar. Em comum, os tintos em geral passam por barricas de primeiro, segundo e terceiro uso.

Marcelo salienta que a variação de temperatura tem um efeito maior sobre o vinhedo da Chapada Diamantina do que o regime de chuvas. Podendo variar de 2 a 3 graus. 

Das cinco safras vinificadas até agora, a de 2019 pode ser considerada a mais fria; a safra de 2020 um pouco úmida e temperatura elevada, a de 2021 e 2022, com perfil próximo a de 2019 e por fim a safra que vem aí, de 2023, é considerada a mais quente, o que deve aumentar o teor de açúcar das uvas.

Ao vencedor…

De grandes plantadores e exportadores de batata para o refinado e exigente universo de produção de vinho, a família Borré percorreu um caminho até agora vencedor. A trajetória remete ao romance Quincas Borba, de Machado de Assis, no trecho em que o personagem principal explica filosofia do humanitismo “...porque não há vinho que embriague como a verdade. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.” 

No caso, pedindo licença poética ao bruxo do Cosme Velho, uma adaptação possível: “Ao vencedor, as uvas”

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